O iluminismo é um movimento filosófico que defende a racionalidade, a ciência e a livre forma de manifestação religiosa e de expressão. Surgido na Europa no Séc. XVIII, esta corrente visava questionar os governos absolutistas e os privilégios da monarquia e se alastrou pela Europa e América do Norte vindo a influenciar a Revolução Francesa e a Revolução Americana pela independência. Para além dos desdobramentos históricos específicos e aprofundamento nas diretrizes desse movimento, aqui podemos fazer uma relação com as principais manifestações visuais da temporada fall 24, apresentada no mês passado, com a racionalização pregada pela corrente iluminista. Quando o movimento começou a ter forte influência no Séc. XVIII, também teve alcance na moda da época. Afinal, moda sempre foi sobre a materialização do espírito do tempo a após a revolução francesa e o forte embate quanto aos privilégios da coroa e da igreja, o estilo Rococó que era dominante no período não faria mais sentido. Houve a ascensão de uma estética mais igualitária, onde diferentes classes sociais se vestiam de maneira menos formal e mais simples, com predileção por tecidos naturais e modelagen fluídas, já que o que contava não era a riqueza visual, mas sim o conhecimento e a razão. Aqui não podemos ignorar que o iluminismo foi um movimento que pregava o liberalismo, o livre comércio, portanto, uma corrente burguesa que pregava menos influência do Estado nas práticas mercantis. E foi justamente o que ocorreu posteriormente, já que os burgueses comerciantes passaram e se diferenciar por vestimentas mais nobres para criar essa diferenciação da classe trabalhadora. Após a invenção da primeira máquina de fiar denominada spinning jenny, em 1764, a industrialização do tecido mudou todo o cenário dos artesãos que criavam suas peças à mão e esta, na verdade, foi uma das peças principais para o que viria a seguir: a revolução industrial.
Esse breve apanhado histórico mostra como a corrente iluminista, defensora da razão e da liberdade comercial, influenciou de forma irreversível o desenvolvimento social da época e reflete até hoje nas nossas vidas e também no que vestimos. Se a temporada spring 24 foi sobre um retorno ao romantismo, uma ode à delicadeza e aos conceitos tradicionais de feminilidade, com coleções pautadas na estética da década de 50, no conservadorismo utópico de bolhas privilegiadas e em um visual lúdico e bucólico quase escapista, as apresentações da temporada fall 24 vieram para nos colocar de volta a realidade.
Não há espaço para muitas fugas e imaginações quando o mercado de trabalho se mostra cada vez mais escasso e exigente. Não há motivo para nos inebriarmos com flores e saias volumosas quando conflitos e crises humanitárias ocorrem em todo o mundo. A estética dessa temporada enaltece o visual de performance. Roupas feitas para trabalhar, peças que engradecem a cultura laborativa, feitas para a realidade, para um dia a dia real e uma pessoal real. Ternos, camisas, blazers, xadrezes, bolsas enormes que comportam nossa vida, cores sóbrias, uniformização.
Seria essa narrativa influenciada pela razão uma proposta para o progresso, para usar o trabalho e as liberdades individuais em prol do desenvolvimento econômico e social e nível global, ou só mais uma maneira de reforçar a dinâmica do mercado baseada na produção desenfreada e compulsória de bens, de serviços, de conteúdo e de identidade que beneficiam em demasia alguns em detrimento de uma maioria? A temporada fall 24 nos deixa pouco espaço para a imaginação e propõe a era da razão.
Mas quem se beneficiará de tamanha obediência ao racional desmedido? Ou será que em uma temporada tão “pé-no-chão”, a ideia seja justamente repensarmos o consumo desenfreado? Afinal, se grande parte dos armários já possuem as peças que foram apresentadas, qual o sentido de novas compras? Essa também seria uma maneira de racionalização do consumo, pautado numa forma mais simples e sustentável de adquirir (ou não) mais bens? Fora os aprofundamentos filosóficos ou desdobramentos econômicos práticos da relação entre o iluminismo e a moda, fato é que temos pela frente uma construção visual muito mais próxima da realidade e da racionalidade, mostrando talvez que nossas prioridades possam ser outras que não as roupas que vestiremos no dia. Menos fantasia e mais unicidade, identificação e aproximação, a fim de que nosso desenvolvimento e contribuições sejam mais benéficos para o coletivo do que para o individual. A razão tem lá suas vantagens.
deixe seu comentário